Essa semana eu fui a um sebo, não sei vocês, mas eu amo, sou praticamente rato de sebo. Quando entrei me deparei com uma senhora que estava com cara de tédio, afinal de contas, só tinha eu e ela nesse lugar. Seu olhar contemplativo folheava um livro antigo. A capa, de couro gasto, ostentava um título familiar: Fausto, de Goethe. Não resisti e, após um breve aceno, perguntei o que achava da obra. Ela sorriu, ajeitou os óculos e iniciou um monólogo que não só resumia a narrativa, mas também mergulhava na profundidade dos dilemas humanos.
Fausto, explicou ela, é um clássico atemporal, uma obra-prima que transcende sua época e reverbera nos corações e mentes de cada geração. A história gira em torno do Dr. Fausto, um erudito que, desiludido com a futilidade do conhecimento acadêmico e com a incapacidade de alcançar a plenitude espiritual, faz um pacto com Mefistófeles, um demônio astuto e manipulador. Em troca de sua alma, Fausto busca experimentar a verdadeira essência da vida, entregando-se aos prazeres mundanos e aos dilemas existenciais.
A senhora apontou que a genialidade de Goethe está em como ele explora a dualidade da condição humana. Fausto é, ao mesmo tempo, um herói e um vilão — alguém em busca de transcendência, mas que se perde no hedonismo e na cobiça. A narrativa não é apenas sobre a batalha entre o bem e o mal, mas sim um profundo questionamento sobre a insaciável sede humana por significado, poder e felicidade. A dualidade entre Fausto e Mefistófeles representa a eterna luta interna que todos nós enfrentamos: seguir o caminho da virtude ou ceder aos impulsos sombrios que nos rondam.
Além disso, continuou ela, o livro possui uma estrutura peculiar, com elementos que se alternam entre a poesia lírica e o drama filosófico, criando uma experiência de leitura única. Dividido em duas partes, o primeiro volume é mais simbólico e introspectivo, enquanto o segundo, escrito décadas depois, é mais surreal e alegórico, refletindo a evolução da própria mentalidade de Goethe ao longo dos anos. Essa mudança de tom entre as partes amplia o impacto do livro e convida o leitor a refletir sobre a passagem do tempo e a mutabilidade da alma humana.
Outro ponto interessante, ressaltou ela, é a figura de Mefistófeles, o demônio tentador que, paradoxalmente, age como catalisador de mudança e de autoconhecimento para Fausto. Seu sarcasmo e cinismo revelam verdades desconfortáveis, fazendo-o mais do que um simples antagonista; ele é, na verdade, o reflexo dos desejos reprimidos de Fausto, a personificação do lado sombrio que todos preferem ignorar. Isso torna a obra muito mais do que uma simples história sobre um pacto demoníaco — ela se torna um espelho para os leitores, desnudando suas próprias ambições e fraquezas.
Por fim, comentou que, no desfecho, há um brilhante questionamento: a salvação de Fausto é merecida ou apenas um artifício literário para suavizar o impacto da história? Goethe deixa essa resposta em aberto, sugerindo que a redenção não depende apenas de ações, mas do próprio desejo de transformação interior. É um final que desafia o leitor a ponderar sobre os próprios valores e a verdadeira natureza do bem e do mal.
A velha fechou o livro, olhando para o teto embolorado e cheio de teia de aranha. “Goethe nos deu um espelho em forma de livro”, murmurou, pensativa. Agradeci a explicação, mas antes que pudesse perguntar mais, ela se levantou, ajeitou os seus óculos e foi para um cômodo autorizado somente para responsáveis. Fiquei ali, sozinho, na sala dos livros do Sebo, refletindo sobre Fausto e seus dilemas, com a nítida sensação de que, assim como o protagonista, todos nós estamos em busca de algo que, talvez, nunca possamos alcançar plenamente.