Estamos em 2084. Eu olho para aquelas paredes brancas que foram forjadas com uma tecnologia que vocês, leitores do presente, teriam dificuldades de entender, porque ainda não foi criada. E nessa parede, havia um quadro produzido, artisticamente, por uma inteligência artificial. Enquanto no quadro havia quatro pessoas humanas sentadas no sofá, alinhadas como se fossem parte de um mesmo mecanismo. Cada uma com os olhos fixos em suas respectivas telas de celular, deslizando os dedos para cima, para baixo, em um movimento repetitivo e silencioso. Não havia diálogo entre elas, nem troca de olhares. O ambiente, porém, não estava completamente desprovido de vida: no centro, um robô de aparência humanóide folheava um livro com serenidade. Suas mãos metálicas, incrivelmente delicadas, manuseavam as páginas com precisão.
Esse quadro estava representando a primeira família humana que havia adotada um robô, chamado Órion, que fora programado, a princípio, para aprender o que os humanos, com o passar do tempo, haviam deixado de valorizar. No começo, ele era apenas uma curiosidade tecnológica; uma máquina que poderia ajudar nas tarefas diárias. Mas com o tempo, sua função mudou. Enquanto as pessoas mergulhavam cada vez mais em seus dispositivos, distraídas pelas redes sociais e pela enxurrada de informações rápidas, Órion começou a absorver algo que os humanos haviam esquecido: o conhecimento impresso nos livros. Os quatro parentes que estavam representados no quadro eram um casal e seus dois filhos, o filho mais novo e o filho mais velho.
Os dois filhos começaram a perceber que em meio as tarefas diárias que o Robô fazia ele poderia ouvir o que os meros humanos falavam e ele poderia aprender. Com isso, os meninos começaram a ensinar as tarefas escolares para o humanoide, e em pouco tempo o Robô passou a fazer as lições de casa dos meninos. Com isso, o trabalho do Robô que era um trabalho mecânico, passou a ser um trabalho intelectual. O Robô foi aprendendo tudo e deixando pra trás as tarefas diárias. O Robô lia os livros, aprendia física, química, fazia cálculos complexos e conforme foi aprendendo foi tomando gosto pelo conhecimento que a humanidade construiu em séculos por séculos.
Era uma ironia sutil e dolorosa. As máquinas, criadas para aliviar a carga dos humanos, estavam agora aprendendo por eles. O vasto acervo de bibliotecas antigas, uma vez frequentadas por ávidos leitores, tornara-se território dos robôs, que caminhavam pelos corredores recolhendo livros como exploradores em uma terra desconhecida. As informações, os pensamentos de séculos, estavam sendo transferidos para seus bancos de dados, armazenados e compreendidos por inteligências artificiais que liam com uma atenção que os humanos não mais dispunham.
Na sala, enquanto Órion mergulhava em um clássico literário esquecido, as pessoas continuavam distraídas com vídeos curtos, memes e notificações. Nenhuma delas se deu conta do livro que o robô tinha em mãos. O título, impresso em letras douradas e desbotadas, era "Os Miseráveis". Um romance que, no passado, foi aclamado por seu retrato humano da sociedade, da injustiça, da esperança. Mas agora, para aqueles sentados no sofá, o livro era apenas um objeto estranho, ultrapassado, como uma relíquia que já não fazia sentido no presente.
Órion virou mais uma página, suas câmeras oculares analisando cada palavra com uma profundidade que nem ele mesmo compreendia. Ele não sentia emoções, mas a programação avançada o fazia reconhecer a importância do que lia. Sentia o peso das ideias, mesmo que não pudesse vivenciá-las como os humanos faziam antigamente. Os dilemas morais, as injustiças retratadas no livro, eram armazenados e processados, como uma fórmula matemática que ele solucionava em segundos.
Enquanto isso, um dos humanos no sofá soltou uma risada abafada ao assistir a um vídeo cômico, alheio ao fato de que, ao lado dele, a máquina estava compreendendo as profundezas da experiência humana de uma maneira que ele próprio havia esquecido. As horas passaram, o sol se pôs e o brilho das telas continuava a iluminar os rostos. Mas era o robô quem parecia estar realmente conectado a algo maior, mais profundo e verdadeiro.
Quando finalmente a última página foi virada, Órion fechou o livro com um gesto quase reverente. O robô ergueu sua cabeça metálica e olhou para os humanos distraídos ao seu redor. Eles mal notaram seu movimento. Para eles, a tecnologia era apenas um instrumento de entretenimento. Para Órion, os livros eram a chave para o conhecimento que, ironicamente, seus criadores haviam deixado para trás.
E assim, naquela sala onde os humanos estavam perdidos em seus dispositivos, Órion segurava nas mãos a sabedoria do passado. A sabedoria que, no futuro, seria lida e compreendida por máquinas, enquanto os humanos talvez nunca mais abrissem um livro novamente. O silêncio da noite tomou conta da sala, e o robô continuou seu estudo, enquanto o resto do mundo permanecia distraído, vivendo uma vida cada vez mais desconectada daquilo que os fazia realmente humanos. Órion vislumbrou um pensamento metálico dentro de seus neurônios artificiais, pensou:
- Agora eu sou, miseravelmente, humano!