Ele acordou aquele dia como todos os dias acordou. Abriu os olhos e olhou em volta, tentando entender o que estava acontecendo. Porém, apenas constatou que estava acordando. Nada demais. Levantou-se e foi escovar os dentes, com o celular em mãos e as redes sociais abertas. Não entendo essas pessoas, mostrando-se a não sei quem, querendo aparecer mais que outras pessoas que também tentam aparecer ao mundo. Monotonamente, o dedo nervoso ia arrastando pra cima, pra baixo pro lado, parecendo que queria furar a tela. Não furou e continuou com o mesmo movimento incessante.
Perdia-se por vezes em seu pensamento, tentando achar o seu lugar, mas nunca achava. Foi à cozinha, como sempre. Colocou água na panela, colocou o filtro, no filtro colocou o café. E deixou a água fervida escorrer pelo filtro, misturando água e café, como se fosse ele e seus amigos que estavam em uma dessas baladas na noite anterior. Tudo junto e misturado. Lembrou que era isso que devia ter deixado com dor de cabeça, a ressaca. Era gole e mais gole de cerveja, vinho e álcool. Como sempre, prometeu a si mesmo que nunca mais beberia, e que nunca mais iria sair pra balada.
Essa mesma mentira era repetida em sua cabeça, todos os dias que saía com seus amigos. Ou pseudo-amigos.
Depois de lembrar que estava com dor de cabeça, tomou a aspirina, enquanto esperava a água se misturar ao pó de café. E a água saia pretinha, e era delicioso o pensamento, depois de um gole de café. O dia só começava nessa hora. Depois de uma xícara de café, era como a noite que só começava depois de uma latinha de cerveja. Ele tentava esquecer essa ideia.
Para esquecer, dirigia-se com uma caneca de café, já devidamente adoçado, até o seu escritório. Daniel era um assistente de um escritório de advocacia, e ele só trabalhava home office. Pois ele não era bem um advogado, ele só trabalhava fazendo pesquisas para que os advogados escrevessem os processos, os artigos, os casos. Ele era o cara que estava nos bastidores, dando consultoria aos protagonistas da justiça.
Por isso, ele tinha um escritório dentro de casa, onde pode trabalhar à vontade. Tinha acesso à internet, uma biblioteca com cópias dos processos e livros jurídicos. Quando ele precisava saía de casa para a biblioteca para consultar ou pesquisar. Porém, de um modo geral, não precisava, na rede mundial ele conseguia achar de tudo. Sabia onde pesquisar e colher as informações que ele precisava.
Hoje, entretanto, ele não queria trabalhar naquela manhã, ele queria ler um belo romance. E foi em sua pequena biblioteca pessoal procurar esse belo romance. Escolheu um pelo título: “A insustentável leveza do ser”, era um de seus livros preferidos. Já havia lido várias vezes, pelo título. Que o fazia refletir em sua insignificância. O seu ser era de fato insustentável, ainda que leve. Era insignificante, mas insustentável. Um paradoxo que o agradava e o instigava. Daniel amava os clássicos.
Ele sentou-se em sua poltrona, abriu o livro e começou a ler, parando apenas para apreciar os goles de seu café. Por vezes, levantava-se apenas para colocar mais café em sua caneca. Era insaciável, como era insustentável o seu ser. Pensava.
Quando chegou na página 50, algo misterioso aconteceu. E o suor escorria em seu ser insustentável. Estaria sonhando? Pensou. Não. Era real, como aquela história. Não, aquela história não era real, era uma ficção, indagou, mas misturado à realidade. Fato. Eram 8 e 5 da manhã, ele havia trocado a responsabilidade do trabalho, pela leveza de ler um romance tomando um café, e algo o surpreendeu naquele momento. Uma página estava em branco. Uma página que sempre esteve preenchida com palavras de ficção e realidade, dessa vez estava em branco. O branco não fazia parte daquele livro. Nunca fez, porém daquela vez estava branco, e as seguintes estavam intactas, todas preenchidas pelas palavras de Milan Kundera, autor de A insustentável leveza do ser. Os pensamentos vinham até a mente de Daniel, e voltavam. Iam e vinham. Porém, ele não estava entendendo é nada. Fazia aquele exercício de recapitular. E se fosse um erro de impressão? Outro pensamento o interrompia, se fosse erro de impressão ele já teria percebido na leitura anterior. Tentava lembrar se aquela página já estava assim anteriormente, mas sua mente não recordava, sua memória de um jovem de mais de 40 anos não dizia nada, e as memórias embaralhavam, e o suor escorria de seu rosto e as palavras se sobressaíam à visão, tirou os seus óculos por um instante, tirou os seus olhos tirou o seu rosto tirou as tintas do livro tirou os seus pensamentos de sua mente retirou-se de seu apartamento belíssimo do bairro do Bexiga em São Paulo correu distante tentando entender, mas o que conseguiu foi esquecer, trocou sua identidade, trocou sua noção, trocou sua roupa, trocou sua visão e pelado pelas ruas gritando, babando, pensando, escapando, e acabou desmaiando no meio da avenida paulista depois de ser atropelado.
Acordou, recobrou a sua consciência. E disse: “Eureka, lembrei. Essa página já estava branca quando li pela última vez!”. Acordou mais uma vez, no dia seguinte. Como sempre. Levantou-se. Escovou seus dentes. Preparou seu café. Abriu um belo livro. E tomou seu café, lendo um belo livro. Como sempre.